EM BUSCA DO PONTO DE EQUILÍBRIO

O Brasil atravessa um dos momentos mais críticos da sua história. E mais do que nunca precisa de uma ponta de esperança. A história da formação da “cultura brasileira”, foi feita a ferro e fogo, por cima da história dos povos originários e estruturada com mão de obra escrava. O desejo de posse dos colonizadores por explorar a natureza, “os recursos naturais e os recursos humanos”, estabelece a reprodução de um Estado (aos moldes coloniais) que apenas através da Constituição Federal de 1988 conseguiu reconhecer os direitos indígenas e entre eles, os direitos culturais, contemplando uma visão de cultura não restrita à elite e o conceito de patrimônio para além dos prédios e monumentos, isso para poder incluir os saberes, fazeres e memórias da cultura popular e das tradições afrobrasileiras e indígenas, entre outras tradições como ciganas, e os valores intangíveis que são transmitidos por esses legados. 

Esse processo cultural de um caminho de “cura da memória brasileira”, foi freado e retrocedido nos últimos anos, devido a um processo político e social que resultou no momento político conservador de extrema dificuldade que vivemos hoje. 

Com o agravamento da pandemia, já sem políticas culturais no cenário nacional, surge a Lei Aldir Blanc e no estado do Rio Grande do Sul é elaborado, concebido e aprovado o Edital Sirley Amaro do Instituto Trocando Ideia, que tem como objetivo premiar e reconhecer trajetórias culturais de relevância para a cultura gaúcha, destacando a cultura de base comunitária. 

No entanto, a desconfiança e a desvalorização completa promovida pelas  denúncias sobre o pleito, com um tom de desqualificar a instituição promotora da execução do recurso, acabaram por manchar injustamente a força e até mesmo a proposta do Prêmio. 

O fato de que este edital, com regras e princípios inclusivos, tenha aberto a possibilidade para que lideranças culturais comunitárias, tivessem seus respectivos direitos ao prêmio reconhecidos, como nunca haviam sido antes, suscitou com que artistas locais de projeção nacional, se sentissem injustiçados ao não serem reconhecidas suas trajetórias.

 Mas afinal, o que a Mestra Sirley Amaro diria? Como costurar essas fissuras, essas dualidades e mesmo tendências a polarizar os debates que tanto parecem nos habitar? Existe um caminho do meio para uma renovação da cultura brasileira e, no caso, a gaúcha? E se existe, de que forma o acontecido recente ao invés de gerar crise, disputas e conflitos, pode servir de reflexão sanadora para esses tempos em que a depressão, as mortes e a perda não só de vidas, mas de planos e sonhos, acarreta a todos (as)? 

Perguntas surgem de todos os lados, algumas com intenções questionáveis e outras com justa medida. Dentre elas: Existiria melhor forma de ser pensado esse desenho, desde o valor do cachê, até a avaliação? certamente deveria haver, mas essa decisão foi feita nas Conferências de Cultura de 2020, agora, o que nos cabe, às pessoas que integram o setor da cultura, é nos auto responsabilizar e também exercitarmos um pouco mais nossa consciência sócio-cultural e histórica para que não apenas haja “justiça” neste processo cultural, mas que se limpe esse sentimento, essa “nuvem pandêmica” que circunda o país e o exercício da cidadania cultural.

 Neste momento, onde o racismo estrutural se esconde nas denúncias que querem desclassificar as trajetórias culturais dos contemplados, precisamos refletir, de forma amorosa, relembrar como chegamos até aqui e encontrar a melhor solução, que não nos leve para a simples dualidade de opiniões e nos coloque em confronto.

Ao debater o racismo, temos a oportunidade, de juntos, enquanto sociedade, considerando sempre nossas comunidades e os seus fazedores de cultura, transcender de alguma forma, para nos olharmos como irmãos, de forma igualitária, sem distinção feita por rótulos de cor, raça, religiosidade, nível educacional, posses pessoais.

Sempre podemos e devemos fazer o nosso melhor, isto implica estar aberto a críticas e promover as correções e acertos necessários e principalmente refletir a partir da caminhada feita para que se estivesse onde estamos: um edital com homenagem a uma Mestra Griô e com 51% de cotas estabelecidas.

Cabe relembrar que a partir de um episódio de racismo ocorrido no RS em 03/07/2020 durante um debate ao vivo promovido pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS), provocou um movimento forte que trouxe para a discussão da execução da Lei Aldir Blanc, inclusive a nível nacional, a necessidade de garantir a existência de Políticas Inclusivas e Afirmativas. 

(https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/07/mariani-ferreira-luciana-tomasi-filme-de-senzala.htm)

Na 5ª Conferência de Cultura, o tema das cotas, também esteve presente, quando em 27/8, encerrando o primeiro Ciclo de Debates, aconteceu o painel  “Políticas Inclusivas e Afirmativas”, onde participaram, Mãe Carmen de Oxalá, Fernanda Kaingáng e Marcos Rocha. A pauta foi a discussão de cotas, pontuação extra, mais divulgação, formas de acesso, aproveitamento de recursos para fortalecer ou construir políticas afirmativas, facilitando mais participação e acesso.

(https://cultura.rs.gov.br/5-conferencia-estadual-de-cultura-encerra-nesta-semana-o-primeiro-ciclo-de-discussoes)

Assim, o edital da SEDAC, onde o Instituto Trocando Ideias foi selecionado já tinha várias definições, quanto ao valor da premiação que agora vem sendo contestada, quanto a existência de cotas mediante autodeclaração nas inscrições, conforme o termo de referência constante do Edital 11/2020.

Muito importante afirmar ainda, que vivenciamos até o resultado inicial do Prêmio Trajetória Cultural RS, as demandas apresentadas, debatidas e conquistadas durante a 5ª Conferência Estadual de Cultura.

  Entendemos que na condução do Instituto Trocando Ideias, que foi validada pela SEDAC, quando foi divulgado o edital, lá estavam bem claras as várias regras e critérios, como também a homenagem póstuma à Mestra Griô Sirley Amaro.

Neste ponto, cabe ressaltar o empenho e a transparência em deixar todos os pontos bem claros, pois houve uma busca ativa para as inscrições que foram aceitas de várias formas: escritas no site, vídeos enviados pelo site e por telefone, via um 0800 disponibilizado, para que os fazedores de cultura, tivessem acesso a premiação. Novamente aqui, percebemos uma demanda forte e feita durante todo o período de debates sobre a implementação da LAB, da necessidade desta busca ativa e de apoio para que as pessoas na ponta, tivessem acesso aos recursos emergências, onde os Pontos de Cultura, sempre se colocaram como suporte às suas comunidades.

 Que os artistas consagrados possam conhecer os Pontos de Cultura e que os Pontos de Cultura possam ser reconhecidos nesta seara do mundo cultural e que, independente do pertencimento étnico, cultural, territorial, despertemos o sentimento de que o amplo patrimônio cultural em que estamos envolvidos pertence à todos e a todas nós. 

Os Mestres e Mestras da Cultura deste edital Trajetórias, que cultivam uma noção afirmada do fazer cultural, agora é hora, que tragam seus ensinos perante esse momento, mostrando caminhos e soluções para que possamos fazer frente ao futuro que nos espera, plantando hoje o que vamos colher amanhã, como realizadores culturais deste era.

Por fim, compartilhamos nossa estranheza e indignação ao tratamento dado a administração deste edital, considerando que as reclamações e os problemas relativos ao mesmo, foram infinitamente menores que outros editais semelhantes, que desde o princípio causaram descontentamento geral, expressos em cartas, reuniões e comentários em redes sociais,

Desta forma, a Rede de Pontos de Cultura do RS se solidariza com o Instituto Trocando Ideia e com todas as pessoas que foram classificadas legitimamente e nos colocamos a disposição para colaborar na correção de possíveis equívocos.

 

Porto Alegre, 24 de Abril de 2021